Um passado que não passa?

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Resumo

Mantida pelo Instituto Trabalho Digno, a Revista Laborare consolida a posição de referência em questões relacionadas ao mundo do trabalho, a partir de uma perspectiva crítica e transformadora. É nesse sentido que nos mantemos firmes na luta em prol do desenvolvimento científico compromissado com a defesa dos direitos humanos e fundamentais dos trabalhadores e das trabalhadoras deste país.

A discussão dos desafios enfrentados pelos agentes do sistema de garantias é importante para que o direito do trabalho estático ganhe dinamismo, sempre considerando as diretrizes que protegem, ao menos em tese, quem vive do trabalho. Essa compreensão torna-se ainda mais relevante em situações extremas, como na exploração do trabalho análogo ao de escravo.

De um lado, existe a visão clássica do trabalho escravo, como instituto admitido formalmente pelo Estado, que teve seu fim em 13 de maio de 1888. A partir de então, a ausência de guarida normativa para a manutenção da propriedade de uma pessoa sobre a outra levou à configuração de um quadro de proteção jurídica contra situações de escravização.

Diante da falta de um conjunto de ações públicas que efetivamente protegessem a classe trabalhadora, formou-se um contexto de ilegalidade. De tão indignas, são situações de exploração que, se não constituem mais trabalho escravo, podem ser compreendidas como análogas àquela figura. A referência a esse novo padrão remete ao uso de nomenclaturas como trabalho escravo moderno ou contemporâneo, neoescravidão e trabalho análogo ao de escravo.

Depois de mais de um século, o reconhecimento estatal da persistência de contextos laborais similares à escravidão abrangeu, dentre outras medidas, a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. O funcionamento do grupo móvel demanda a coordenação de Auditores Fiscais do Trabalho, organizados em equipes de fiscalização, que planejam e executam a política pública de combate a essa chaga social, o que fazem ao lado de forças policiais e de outros agentes estatais, a exemplo da procuradoria do trabalho e, em nível processual, da magistratura laboral.

O reconhecimento do problema não basta; é preciso manter estrutura equivalente à gravidade de um quadro que, até meados de 2022, resultou no resgate de cerca de 60 mil pessoas escravizadas. A sentença condenatória do Estado brasileiro no Caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, revela a necessidade de avanços estatais coerentes com o panorama de discriminação estrutural que alimenta o ciclo vicioso do trabalho análogo ao de escravo.

A expectativa de consolidação da postura estatal engajada com a eliminação do trabalho escravo não é vazia. Trata-se de uma meta assumida e estabelecida no item 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030 da ONU, que demanda a adoção de medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. Porém, a realidade é outra.

O Brasil encontra-se distante do objetivo de acabar com a exploração laboral em condições similares à escravidão. É a conclusão que resulta, por exemplo, do exame do conjunto de ações prejudiciais à autonomia e ao funcionamento da fiscalização laboral. Apenas para citar alguns dos fatores associados a essa realidade, tem-se a falta de recomposição dos quadros da fiscalização, que somam cerca de dois mil cargos vagos; restrições orçamentárias; enxugamento das diretrizes de proteção à segurança e à saúde do trabalho constantes em normas regulamentadoras; e as seguidas reestruturações em nível ministerial, que reduziram a Inspeção do Trabalho no Brasil ao patamar de subsecretaria.

De uma forma mais ampla, ataques à lista suja dificultaram a manutenção e atualização em determinados períodos, na última década; propostas legislativas de revisão do conteúdo normativo do artigo 149 do Código Penal ameaçam o dispositivo cujo teor e clareza na definição é uma conquista internacionalmente reconhecida; e a discussão judicial em curso no STF, sobre o padrão probatório conferido aos relatórios de fiscalização e a interpretação diferenciada da condição degradante no trabalho rural em relação ao urbano, agravam a discriminação historicamente vivenciada por quem labora no campo.

Buscando compreender esse passado que parece não passar, neste número da Laborare apresentamos o Dossiê Trabalho Escravo Contemporâneo: faces e interfaces de um problema histórico, composto por dez artigos. Fomos brindados com a coordenação especial das editoras convidadas, Profa. Dra. Valena Jacob (UFPA) e Profa. Dra. Suzy Koury (CESUPA), líderes do Grupo de Pesquisa CNPq "Novas Formas de Trabalho, Velhas Práticas Escravistas".

Abrimos esta edição com um artigo sobre os impactos das reformas neoliberais brasileiras na ação sindical e na precarização do trabalho rural, assinado por Everton Picolotto, Mateus Lazzaretti e Eduarda Trindade; Os autores observaram que os sindicatos conseguiram manter alguns direitos dos associados e contribuições sindicais, nas negociações de convenções coletivas de trabalho. Porém, diante das reformas legislativas e da pandemia de Covid-19, ressaltaram a tendência de redução da assistência aos trabalhadores mais precarizados e, portanto, sujeitos a condições de trabalho degradantes.

Depois, temos um texto sobre os fatores de interseccionalidade incidentes sobre as empregadas domésticas na pandemia de Covid-19, de Pollyana Soares e Camila Bouth. As autoras concluem que a pandemia gerou prejuízos econômicos e custos sociais. Além de novos problemas, agravou outros já implícitos e naturalizados, a exemplo da desigualdade, desvalorização do trabalho doméstico, submissão de mulheres ao trabalho análogo ao de escravo e ausência de políticas públicas efetivas.

No texto que inaugura o dossiê, Aline Pereira trata da necessidade de ampliação das hipóteses de proteção especial às vítimas de trabalho escravo na justiça do trabalho, por meio da proposta de adoção do depoimento especial. A autora defende que a expansão das hipóteses de depoimento especial, de modo a contemplar especialmente as vítimas de condições análogas à de escravo, materializa o princípio da dignidade humana e encontra amparo na teoria da justiça procedimental.

Em seguida, Hermes Costa e Eduardo Costa apresentam retratos contemporâneos luso-brasileiros, que demonstram a relação entre a precariedade e o trabalho escravo. Os autores visualizam na mobilização de múltiplos protagonistas a resposta para a adoção de medidas urgentes orientadas pela efetiva dignificação do trabalho.

Atenta à servidão digital no trabalho, Talita Cardim denuncia a configuração da escravatura dos tempos modernos. O estudo provoca o leitor a uma reflexão sobre a importância da prevenção e garantia laboral em termos de liberdade psicológica no ambiente virtual.

Sob uma perspectiva historiográfica, Moisés Silva e Joyara Oliveira tratam do cativeiro da terra e de homens, na medida em que analisam o trabalho escravo na cadeia produtiva, especificamente quanto aos casos paradigmáticos das fazendas Espírito Santo e Brasil Verde. Demonstram que as ocorrências de trabalho escravo estudadas evidenciam o encadeamento da concentração fundiária e do trabalho escravo no Sul do Pará, e defendem que a desapropriação das propriedades flagradas em caso de trabalho escravo para fins de Reforma Agrária é caminho de efetivo enfrentamento à violência no campo.

Ao abordar o contrassenso entre a evolução e o retrocesso da proteção trabalhista, Geórgia Lima aponta fatores normativos precarizantes que conduzem às situações de trabalho escravo contemporâneo. A autora promove reflexões sobre práticas de combate e prevenção, e fortalecimento das medidas preventivas, com vistas à eliminação de problemas estruturais.

A partir de um olhar que percebe a configuração de contextos discriminatórios nas relações laborais, Daniela Muller apresenta apontamentos sobre escravidão e racismo no Brasil. O texto revela a persistência do mito da democracia racial e da ideologia do branqueamento. A autora destaca que os dados sobre a raça dos envolvidos ainda são precários e que a falta de percepção relativa a esse fator impede a adoção de medidas afirmativas voltadas especificamente aos trabalhadores negros, o que limita as possibilidades de erradicação do trabalho escravo contemporâneo.

O domínio da leitura marxista encontra-se presente no estudo de Marcela Soares, quanto ao nexo entre escravidão e dependência decorrente das opressões e superexploração da força de trabalho brasileira. A autora aponta que os dados da escravidão contemporânea revelam movimentos permanentes de expropriações do capital, inteligíveis na opressão exploração de uma força de trabalho racializada e marcadas pelo patriarcado, que migra para sobreviver.

Em defesa da uniformização jurisprudencial dos tribunais regionais federais, Carolina Oliveira destaca os dissensos interpretativos associados aos processos que versam sobre trabalho em condições análogas às de escravo. Argumenta que a concepção das condições degradantes de trabalho como meras expressões das realidades rústicas da zona rural do País, em discussão no âmbito do STF, apenas reforçaria a discriminação estrutural existente. Além de perpetuar a insegurança jurídica, essa noção ofende a dignidade humana e os valores sociais do trabalho.

Com o intuito de retirar da invisibilidade o trabalho escravo infantil, Maurício Fagundes e Rafael Castro apresentam o fenômeno à luz da realidade brasileira. Os autores concluem que o trabalho infantil surge como uma espécie do trabalho escravo, o que revela a necessidade de especial atenção e medidas protetivas para crianças e adolescentes submetidas a tais condições. Agir de modo contrário apenas impulsiona a invisibilidade do trabalho escravo infantil e reforça os indicadores de vulnerabilidade para exploração laboral.

Por fim, Adriana Wyzykowski e Thaís Ribeiro também se dedicam a uma realidade pouco percebida, mas que vem sendo alvo das ações de fiscalização no período mais recente, que consiste no trabalho doméstico análogo ao de escravo. Segundo as autoras, o estudo de caso realizado indica que a relação de trabalho escravo é dissimulada pela aparente afetividade entre vítima e agressores, e a invisibilidade da situação é agravada pelo confinamento no âmbito privado do lar e pela naturalização da exploração do trabalho de cuidado realizado pelas trabalhadoras negras.

São textos que revelam a produção acadêmica orientada pelo estudo de problemas que permeiam a continuidade do trabalho escravo contemporâneo no país. As reflexões realizadas alimentam a esperança de que a exploração laboral indigna seja, em um futuro não muito distante, apenas um fato histórico.

Boa leitura!

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Publicado

2022-08-01

Como Citar

Editores, O. (2022). Um passado que não passa?. Laborare, 5(9), 3–8. Recuperado de https://revistalaborare.org/index.php/laborare/article/view/160